As principais terapias direcionadas para o tratamento da doença de Alzheimer disponíveis comercialmente têm como alvo circuitos cerebrais comprometidos pela doença e não agem na fisiopatologia da neurodegeneração em si. Novas medicações têm sido desenvolvidas tendo como alvo a causa dos processos neurodegenerativos.
O lecanemab é um anticorpo monoclonal IgG1 humanizado que se liga com alta afinidade às moléculas solúveis de beta-amilóide (Aβ).
Em um estudo de fase 2b com o lecanemab envolvendo 854 pacientes, os resultados foram negativos para o desfecho primário em 12 meses de seguimento. No entanto, análises adicionais mostraram redução de patologia beta-amilóide e melhora de desfechos clínicos com 18 meses de seguimento, o que motivou a realização deste estudo de fase 3 com o lecanemab, o CLARITY-AD.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo de fase 3, multicêntrico, duplo-cego, randomizado de 18 meses envolvendo pessoas de 50 a 90 anos de idade com doença de Alzheimer precoce (comprometimento cognitivo leve ou demência leve causada por Alzheimer).
Todos participantes tinham marcadores positivos para a doença de Alzheimer (DA), que poderia ser pelo PET com marcador de amilóide ou dosagem de Aβ no líquor.
Os participantes elegíveis foram designados aleatoriamente em um proporção de 1:1 para receber lecanemab intravenoso (10 mg/kg a cada 2 semanas) ou placebo.
DESFECHO PRIMÁRIO = Alteração da linha de base na pontuação da CDR-SB (Clinical Dementia Rating – Soma dos Boxes) aos 18 meses. (Figura 1)
A CDR é uma medida validada usada em ensaios clínicos de doença de Alzheimer que é obtida por meio de entrevistas com os pacientes e seus cuidadores e capta a cognição e a funcionalidade por meio de seis domínios. Pontuações para cada domínio variam de 0 a 3, com pontuações mais altas indicando maior comprometimento. A pontuação total varia de 0 a 18, com uma pontuação de 0,5 a 6 indicando Alzheimer precoce.
DESFECHOS SECUNDÁRIOS =
-Carga amiloide no PET medida em centilóides(com os traçadores florbetaben, florbetapir ou flutemetamol)
-Outras escalas cognitivas: ADAS-cog14; ADCOMS;ADCS-MCI-ADL
Além da monitorização de desfechos de segurança padrões, a ocorrência de ARIA (Amyloid-Related Imaging Abnormalities) foi monitorada durante todo o ensaio por realização de ressonância magnética nas semanas 9, 13, 27, 53 e 79, bem como na visita de acompanhamento de 3 meses na semana 91. A ARIA foi subdividida em ARIA-H que seria aquela relacionada a depósitos de hemossiderina e ARIA-E relacionada com edema.
RESULTADOS
Um total de 5.967 pessoas foram triadas e 1.795 submetidos à randomização; 898 foram designados para receber lecanemab e 897 para receber placebo em 235 centros na América do Norte, Europa e Ásia entre março de 2019 a março de 2021.
A pontuação média do CDR-SB no início do estudo foi de aproximadamente 3,2 tanto no grupo lecanemab quanto no placebo, achados consistentes com Alzheimer precoce (escore de 0,5 a 6).
A média ajustada a alteração em relação à linha de base em 18 meses no escore CDR-SB foi de 1,21 no grupo lecanemab e 1,66 no grupo placebo (diferença, -0,45; Intervalo de confiança [IC] de 95%, −0,67 a −0,23; P<0,001).
No subgrupo envolvendo 698 participantes que fizeram PET amilóide seriado, houve maiores reduções na carga amilóide cerebral com lecanemab do que com placebo (diferença, -59,1 centilóides; 95% CI, -62,6 a -55,6). (Figura 2)
Em relação aos desfechos de segurança, as mortes ocorreram em 0,7% dos participantes no grupo lecanemab e em 0,8% no grupo placebo.
Nenhuma morte foi considerada pelos investigadores como relacionada ao lecanemab ou ocorrida decorrente de ARIA.
Eventos adversos ocorreram em 14,0% dos participantes no grupo lecanemab e em 11,3% do grupo placebo.
Os eventos adversos mais comuns foram:
-Reações relacionadas à infusão (26,4% com lecanemab e 7,4% com placebo);
-ARIA com micro-hemorragias cerebrais, macro-hemorragias ou siderose superficial (ARIA-H; 17,3% com lecanemab e 9,0% com placebo);
-ARIA-E (12,6% com lecanemab e 1,7% com placebo);
-Dor de cabeça (11,1% com lecanemab e 8,1% com placebo);
A maioria dos eventos de ARIA-E com lecanemab foram leves a moderados (91%). Esses eventos foram em sua maioria assintomáticos (78%), ocorreram durante os primeiros 3 meses do período de tratamento (71%) e resolvidos em 4 meses após a detecção (81%).
Um total de 2,8% dos participantes do grupo lecanemab tiveram ARIA-E sintomática; sintomas comumente relatados foram dor de cabeça, distúrbios visuais e confusão.
DISCUSSÃO
Neste estudo de fase 3, a progressão da doença de Alzheimer em fases iniciais medida pelo CDR-SB foi menor no grupo que recebeu lecanemabe do que no grupo placebo. Além disso, marcadores de proteína amilóide mostraram redução de sua deposição no grupo de tratamento.
Acredita-se que a vantagem fisiopatológica do lecanemabe é que ele tem alta seletividade para subtipos de agregados solúveis de Aβ em comparação com formas monoméricas de Aβ; ou seja, um perfil direcionado para subtipos mais tóxicos da amilóide.
Apesar dos resultados positivos animadores para uma droga que propõe agir na fisiopatologia de uma doença até então sem cura e devastadora, o estudo conta com uma série de limitações.
Entre estas, está o fato de que ele inclui dados de apenas 18 meses de tratamento. Uma extensão aberta do estudo do Clarity-AD está em andamento e poderá fornecer dados adicionais de segurança e eficácia além de 18 meses.
O estudo foi realizado durante a pandemia de Covid-19 e encontrou diversos obstáculos, incluindo a falta de doses, avaliações atrasadas e doenças intercorrentes. Apesar da taxa de abandono de 17,2%, uma análise de sensibilidade que avaliou o efeito das doses perdidas foi consistente com a análise primária.
Além disso, as ocorrências de ARIA podem ter comprometido o cegamento dos grupos experimentais, já que sua ocorrência foi maior no grupo de tratamento. Os investigadores tentaram minimizar esse viés tornando os avaliadores clínicos “cegos” para as avaliações de segurança.
Finalmente, este foi um com patrocínio da indústria farmacêutica. A Eisai projetou o ensaio e analisou os dados em colaboração com os autores acadêmicos, forneceu o lecanemab e o placebo, forneceu financiamento para redação médica e auxiliou na redação do manuscrito. A Biogen também forneceu patrocínio para o estudo.
*** IMPLICAÇÕES CLÍNICAS PARA A PRÁTICA DIÁRIA EM NOSSO CONTEXTO E OPINIÃO DO EDITOR ***
A publicação deste estudo é celebrado como um marco no meio científico, já que se trata de um avanço importante no tratamento da doença de Alzheimer.
No entanto, as implicações para a prática diária no cenário atual ainda estão longe de tornar a implementação em breve do uso desta medicação uma rotina custo-efetiva. Primeiro, sabemos que a maioria dos quadro demenciais são subdiagnosticados ou são diagnosticados quando a demência já está em sua fase moderada. O uso da medicação exige o diagnóstico em estágios iniciais, antes mesmo que o indivíduo tenha perda significativa de funcionalidade. Segundo, muitos quadros de comprometimento cognitivo leve não são devidos à doença de Alzheimer, o que exige a utilização de biomarcadores para selecionar os pacientes elegíveis por serem considerados estágios iniciais do Alzheimer. Sabemos que a disponibilidade desses marcadores ainda não é uma realidade e sua realização apresenta alto custo. Por último, a realização da medicação exige um acompanhamento médico intenso e com realização seriada de exames de imagem para monitorização de efeitos adversos, uma medida que também aumenta a demanda por recursos de alta complexidade.
Ou seja, a implementação do uso de medicações anti-amilóide na prática clínica vai exigir uma melhoria de toda a rede de assistência aos pacientes com quadro demenciais. Esta melhoria é bem vinda e necessária e esperamos que a aprovação destas medicações aumente a conscientização e investimento de recursos não só para permitir o uso de terapias de nova geração, mas também para melhorar o atendimento das pessoas com demências como um todo.
Apesar disso, celebramos o avanço que esta medicação representa e estamos ansiosos pelos novas conquistas que ainda estão por vir no tratamento da doença de Alzheimer.