Ao longo das últimas duas décadas, as síndromes de encefalite autoimune (EA) deixaram de ser amplamente desconhecidas e passaram a assumir um papel de destaque como um dos principais diagnósticos diferenciais a considerar em pacientes que apresentam déficits de memória rapidamente progressivos, alterações do estado mental e manifestações psiquiátricas.
A diversidade e complexidade dos distúrbios relacionados às síndromes de EA têm destacado a importância da determinação de anticorpos neurais como elemento central na abordagem diagnóstica. No entanto, o uso indiscriminado e a má interpretação dos resultados têm levado a um aumento de diagnósticos incorretos e de casos descritos como EA soronegativa ou anticorpo-negativa.
O artigo oferece uma visão abrangente dos critérios de EA, das causas mais comuns de erros de diagnóstico e dos desafios atuais relacionados à EA negativa para anticorpos.
Critérios e algoritmo para diagnóstico de encefalite autoimune
Em 2016, um Position Paper publicado no Lancet Neurology propôs uma abordagem clínica e um algoritmo de diagnóstico para facilitar o reconhecimento e o tratamento precoce das EAs, evitando a espera pelos resultados dos testes de anticorpos, que muitas vezes demora para sair e pode resultar em atraso de tratamento.
Os três critérios mínimos para suspeitar de encefalite autoimune são:
1) Início subagudo de déficits de memória, estado mental alterado ou sintomas psiquiátricos com duração inferior a três meses;
2) Presença de novos déficits focais de SNC, convulsões inexplicadas, pleocitose do LCR ou achados de ressonância magnética indicativos de encefalite;
3) Exclusão adequada de outros diagnósticos diferenciais, conforme sugerido na tabela 1.
Tabela 1.
Enquanto para alguns tipos de EA a presença de anticorpo é necessária na definição diagnóstica, existem quadros de encefalite cujo diagnóstico pode prescindir da identificação do anticorpo. Isso acontece por três motivos principais:
-Os critérios correspondentes foram desenvolvidos antes da descoberta dos anticorpos (por exemplo, ADEM);
-A condição pode ocorrer com ou sem anticorpos (por exemplo, ADEM pode acontecer com ou sem anticorpos anti-MOG);
-O preenchimento de características clínicas e radiológicas distintas é suficiente para a categorização de encefalite autoimune definitiva (por exemplo, encefalite límbica).
Mesmo para casos de encefalite límbicas, a subclassificação pela determinação do anticorpo específico (anti-LGI1, anti-GABAb, anti-AMPA, anti-Hu, anti-Ma2, ou outros) é importante e tem implicações para o tratamento e prognóstico.
Considerações ao usar os critérios diagnósticos de encefalite autoimune
Quatro considerações devem ser feitas para evitar diagnósticos errôneos e tratamentos desnecessários em relação ao diagnóstico de EA:
>> Primeiro, o cumprimento dos três requisitos mínimos para uma possível encefalite autoimune é crucial para reduzir erros de diagnóstico. Em um estudo retrospectivo, de multicêntrico de 107 pacientes diagnosticados incorretamente com EA, 72% erros de diagnóstico poderiam ter sido evitados se os dois primeiros requisitos tivessem sido implementados. O erro mais comum foi considerar encefalite autoimune em pessoas com sintomas crônicos (>3 meses) sem alterações inflamatórias na ressonância magnética cerebral ou no líquido cefalorraquidiano.
>> Em segundo lugar, os três requisitos para uma possível encefalite autoimune não devem ser usados como critérios independentes. Esses critérios representam apenas as características clínicas mínimas para que um distúrbio seja considerado como potencial encefalite autoimune e, a partir de então, iniciar um fluxograma de investigação apropriado.
>> Em terceiro lugar, o teste de anticorpos contra antígenos de superfície neuronal deve incluir a análise do líquido cefalorraquidiano e duas técnicas de análise diferentes (ou seja, imuno-histoquímica cerebral e ensaio baseado em células). No estudo de pacientes que foram diagnosticados erroneamente com EA, metade dos erros diagnósticos foram devidos a testes séricos e má interpretação dos achados.
>> Quarto, nem todos os anticorpos têm o mesmo valor diagnóstico. Os anticorpos que têm relevância clínica estão associados a síndromes específicas ou têm efeitos patogênicos.
Considerações sobre o diagnóstico de encefalite autoimune anticorpo-negativa
A encefalite autoimune com anticorpos negativos inclui dois subconjuntos de distúrbios.
Um subconjunto compreende encefalites que se manifestam com síndromes clínicas ou radiológicas bem estabelecidas, como encefalite límbica, ADEM e encefalite do tronco cerebral de Bickerstaff. Esses três distúrbios também podem ocorrer com anticorpos neurais; por exemplo, anti-LGI1 ou outros para encefalite límbica, anti-MOG para ADEM e anti-GQ1B para encefalite de tronco de Bickerstaff.
O outro subconjunto de encefalite autoimune negativa para anticorpos é mais difícil de diagnosticar porque nenhuma síndrome distinta foi relatada. Esses casos são categorizados como provável encefalite autoimune negativa para anticorpos (tabela 2)
Tabela 2
Os critérios para esse diagnóstico exigem evidências de alterações inflamatórias em pelo menos dois dos três testes – ou seja, análise do líquido cefalorraquidiano, ressonância magnética cerebral e biópsia cerebral.
Entre os critérios para provável encefalite autoimune negativa para anticorpos, o quarto critério – relacionado à exclusão de distúrbios alternativos – é muito importante (tabela 1 e 3). Uma lista abrangente de diagnósticos alternativos seria ideal, mas é impraticável. A tabela 3 traz dicas para o diagnóstico dos principais diagnósticos diferenciais, além de 3 EAs que frequentemente são pouco lembradas.
Tabela 3.
Os distúrbios devem ser priorizados de acordo com a idade do paciente. Doenças genéticas precisam ser consideradas (leucodistrofias e doenças mitocondriais) em crianças e adultos jovens, ao passo que em adultos, a doença de Creutzfeldt-Jakob e apresentações atípicas de linfomas primários do SNC são imitações frequentes de encefalite autoimune.
Etapas propostas para refinar o processo de diagnóstico
O número de diagnósticos incorretos de provável encefalite autoimune negativa para anticorpos pode ser substancialmente reduzido se três etapas no processo de diagnóstico forem seguidas. Duas das etapas propostas são clínicas e a terceira refere-se ao teste de anticorpos.
A primeira etapa clínica proposta diz respeito aos três requisitos mínimos indicados para a suspeita de possível encefalite autoimune, conforme citada acima. Embora esses três requisitos sejam diretos e fáceis de implementar, a maioria dos diagnósticos incorretos de encefalite autoimune parece ocorrer nesse ponto.
A segunda etapa clínica proposta refere-se aos critérios para provável encefalite autoimune anticorpo-negativa, conforme mostrado na tabela 2. Atenção especial é necessária para três distúrbios associados a anticorpos que podem ser erroneamente considerados encefalite autoimune negativa para anticorpos, seja porque o teste de anticorpos não está disponível (por exemplo, receptor GABA-A ou IgLON5) ou porque não é considerado (anticorpos MOG no contexto da encefalite cortical).
A terceira etapa proposta diz respeito à otimização do teste de anticorpos. Uma área para melhorar a esse respeito é sempre incluir teste feito no LCR. Essa análise adicional evitaria que os pacientes que só têm anticorpos no LCR fossem considerados como anticorpos negativos.
CONCLUSÃO
O diagnóstico incorreto de encefalite autoimune e provável encefalite autoimune negativa para anticorpos pode ser mitigado pela aplicação cuidadosa de critérios e pelo uso correto do teste de anticorpos.