A amnésia de início agudo é uma apresentação neurológica dramática que pode causar considerável preocupação tanto para o paciente e seus familiares quanto para a equipe médica.
A amnésia global transitória (AGT) representa a causa mais comum de amnésia de início agudo e tem uma apresentação estereotipada de um quadro amnéstico de predomínio anterógrado não acompanhado de outros sinais e sintomas neurológicos que dura menos de 24 horas.
O diagnóstico desta condição geralmente é confirmado de forma retrospectiva pois é necessário caracterizar a melhora e a transitoriedade da amnésia. Dessa forma, na fase aguda, pode ser desafiador distinguir a AGT de outras causas de amnésia de início agudo, como acidentes vasculares cerebrais da circulação posterior, amnésia epiléptica transitória, amnésia psicogênica, amnésia pós-traumática e amnésia tóxica/relacionada a drogas.
Este artigo de revisão foca na caracterização da AGT e de seus potenciais mimetizadores: quadros agudos com acometimento seletivo da memória. O artigo não aborda amnésia aguda associada a comprometimento do nível de consciência (por exemplo, encefalopatia), disfunção cognitiva e comportamental mais ampla (por exemplo, delírio) ou características neurológicas adicionais, como convulsões (por exemplo, encefalite autoimune ou paraneoplásica).
PRINCÍPIOS PARA AUXILIAR NA AVALIAÇÃO DO PACIENTE COM AMNÉSIA
Existem muitos tipos diferentes de memória, mas a memória da qual estamos mais conscientes na transcorrer da nossa vida diária é a memória declarativa. Como o nome já diz, consiste naquela memória que podemos “declarar” aos outros, que retém fatos que podemos traduzir em palavras para serem transmitidas e que podemos acessar de forma consciente. A memória declarativa pode ser subdividida em dois sistemas principais, que refletem a quantidade de conteúdo re-experimental que contêm: a memória episódica e a memória semântica.
MEMÓRIA EPISÓDICA
Refere-se à memória de natureza predominantemente autobiográfica e que consiste de lembranças complexas de eventos que se desenrolam temporalmente, permitindo-nos reviver ‘episódios’ específicos de nosso passado. Ela possui conteúdo emocional e de pensamento em primeira pessoa pertencente a esses eventos específicos.
O hipocampo é o epicentro das redes que participam da codificação, armazenamento, consolidação e recuperação da memória episódica e fica no topo de uma hierarquia de fluxos de processamento multimodal que este processo exige.
MEMÓRIA SEMÂNTICA
Em contraste com as memórias episódicas, as memórias semânticas não têm conteúdo re-experimental e não são associadas a um contexto temporal e topográfico bem definido. Em vez disso, são semelhantes a fatos e refletem nosso conhecimento geral do mundo e conceitos adquiridos sobre objetos, pessoas, acontecimentos históricos e significado das palavras.
Tanto as memórias episódicas quanto as semânticas são altamente interdependentes e podem ser difíceis de fracionar sem ferramentas neuropsicológicas específicas.
O PERÍODO TEMPORAL DA AMNÉSIA
É importante caracterizar a relação temporal dos fatos que refletem a perda de memória com o período de amnésia em si. Essa relação nos leva a dois grupos principais:
Amnésia retrógrada = perda de memória incide predominantemente sobre informações adquiridas no período anterior ao início da amnésia.
Amnésia anterógrada = perda de memória é principalmente para eventos no período após o início da amnésia.
A amnésia aguda pode afetar ambos os períodos de tempo, mas geralmente predomina um. A AGT geralmente se apresenta com uma amnésia anterógrada densa e um grau variável de amnésia retrógrada.
Após a recuperação da AGT, os pacientes geralmente relatam um lapso de memória persistente para o período do próprio ictus, uma perda retrógrada devido ao comprometimento da consolidação durante o evento.
LOCALIZAÇÃO ANATÔMICA
A recordação episódica da memória requer a reassociação de várias características em um único evento a ser re-experimentado. Considera-se que o hipocampo e seus subcampos fornecem a neuroarquitetura para que esse processo associativo ocorra. Na figura abaixo, está representado de forma detalhada este circuito.
Complexo do lobo temporal medial no cérebro humano.
(A) A memória declarativa é suportada anatomicamente pelas estruturas do lobo temporal medial, particularmente o hipocampo (HPC). O corte mostra os subcampos do hipocampo em relação a outros córtices do lobo temporal medial, como o córtex entorrinal (ERC), o córtex perirrinal (PRC) e o complexo parahipocampal (PHC). As fibras do córtex entorrinal projetam-se principalmente no giro denteado (DG). O circuito então prossegue através dos subcampos do hipocampo cornu Ammonis (CA3), CA2 (não rotulado), CA1, e então de volta ao córtex entorrinal através do subículo (SUB).
(B) Imagens coronais do hipocampo e subcampos em 7.0-Tesla.
(C) Os subcampos do hipocampo segmentados manualmente em 7,0-Tesla.
Não é a intenção do artigo discutir cada subcampo do hipocampo, mas o artigo ressalta a importância do CA1 como um importante relé de saída do hipocampo e que parece ter papel central na fisiopatologia da AGT.
Por outro lado, a memória semântica depende de processos corticais amplamente distribuídos no cérebro, mas a representação específica de informações abstratas sobre entidades e conhecimento de eventos parece depender particularmente dos córtices temporal anterior e lateral e parietal inferior.
AMNÉSIA GLOBAL TRANSITÓRIA
A AGT é a síndrome amnésica aguda mais amplamente reconhecida. Sua incidência anual está entre 3,4 a 10 por 100.000 pessoas e é raro acontecer em pessoas com menos de 50 anos.
Trata-se de uma síndrome neurológica com acometimento isolado da memória episódica de início agudo que geralmente tem resolução espontânea ao longo de 4 a 6 horas, mas por definição pode durar até 24 horas.
Caracteristicamente, esses pacientes ficam muito repetitivos, refazendo constantemente perguntas como “onde estou?” e “o que está acontecendo?”, o que reflete o comprometimento predominante de memória anterógrada. Testes neuropsicológicos realizados durante a AGT aguda identificam déficits tanto no aprendizado quanto na recuperação de memórias episódicas verbais e visuais. Esses déficits são reflexos da incapacidade do hipocampo de integrar os múltiplos componentes dos materiais de teste, juntamente com uma falha na transferência de informações da memória de trabalho para a memória de longo prazo. Déficits na memória autobiográfica retrógrada (tipicamente variando dos últimos dias aos últimos anos) também podem ocorrer durante o quadro agudo.
Em até 89% dos casos, a AGT pode ser precipitada por atividades específicas, como esforço físico (em geral, esforços que cursam com valsalva), estressores emocionais ou psicológicos e mudanças bruscas de temperatura (como imersão ao frio).
NEUROIMAGEM
Durante a fase aguda, a RM do cérebro é geralmente normal e, em geral, é utilizada para excluir AVCs e outros diagnósticos diferenciais. A AGT é caracteristicamente associada a alteração na imagem ponderada em difusão (DWI) nos hipocampos na fase pós-amnésia. Em geral, elas aparecem em 12 a 48 horas após a resolução do quadro e a maior taxa de detecção de lesões ocorre 2 dias após o início dos sintomas. Não está claro por que essas lesões no DWI aparecem após um atraso, mas sua presença não confere nenhuma desvantagem prognóstica para o resultado cognitivo geral.
ELETROENCEFALOGRAMA
Embora não seja considerado um fenômeno epiléptico, a AGT tem sido relatada como acompanhada de anormalidades no EEG em cerca de 10% a 15% dos pacientes. A alteração mais típica é a lentificação cortical. Ocasionalmente descargas epileptiformes podem ser vistas e que, na ausência de outras características clínicas de epilepsia, sua presença não deve suscitar a preocupação de um processo epiléptico.
PROGNÓSTICO
Em geral, o risco de recorrência da AGT é baixo, mas o quadro pode recorrer. Em um grande estudo de coorte retrospectivo de 1.044 pacientes, 901 tiveram um único episódio de AGT e 143 apresentaram AGT recorrente em um período de 18 anos. Os pacientes com recorrência do quadro tendem a ser mais jovens e com maior taxa de enxaqueca.
Estudos cognitivos de acompanhamento mostram que os pacientes retornam ao desempenho equivalente aos controles pareados por idade normalmente dentro de 30 dias e, quando há comprometimento cognitivo persistente, isso provavelmente reflete distúrbios de humor pré-existentes antes do início da do evento agudo, em vez de qualquer perturbação da memória do AGT.
Também não há diferença nas taxas de mortalidade para pacientes com AGT versus controles pareados por idade, nem aumento do risco de demência ou outras doenças neurológicas
Apesar das alterações na difusão, a AGT não representa um quadro isquêmico propriamente dito e esses pacientes não parecem apresentar risco aumentado de AVC posterior.
MECANISMOS FISIOPATOLÓGICOS
Há várias hipóteses e explicações fisiopatológicas para a AGT, nenhuma delas foi comprovada.
A associação de AGT com enxaqueca parece sugerir um papel da depressão cortical alastrante.
O padrão de irrigação do hipocampo e seus subcampos parece sugerir uma maior susceptibilidade da região CA1 à lesão vascular, o que favorece a teoria vascular/perfusional como causal da AGT.
Suprimento vascular para o hipocampo.
A., artéria; Ant., anterior; ACA, artéria comunicante anterior; ACI, artéria carótida interna; ACM, artéria cerebral média; Med., medial; PCA, artéria cerebral posterior; PCommA, artéria comunicante posterior; poste, posterior; Posterolat., posterolateral.
O principal diagnóstico diferencial da AGT na fase aguda é o AVC com acometimento estratégico de regiões que podem causar amnésia, em destaque a isquemia do hipocampo.
SUPRIMENTO VASCULAR DO HIPOCAMPO
A vascularização arterial do hipocampo é realizada por três principais artérias, representadas na figura acima: a artéria hipocampal anterior; a artéria hipocampal média; e a artéria hipocampal posterior.
Em termos de subcampos CA, CA2 é o subcampo mais bem vascularizado, seguido de CA3, sendo CA1 o menos bem vascularizado. Não está claro se esse suprimento vascular reduzido na região CA1 está implicado na fisiopatologia da AGT.
DIFERENCIANDO AGT DE ISQUEMIA HIPOCAMPAL
O primeiro passo é definir a síndrome clínica.
A isquemia no território da artéria hipocampal (uma apresentação rara de acidente vascular cerebral) parece estar associada a cinco apresentações diferentes:
- Infartos hipocampais anteriores com alterações no nível de consciência, alucinações visuais e déficits de memória anterógrada.
- Infartos hipocampais posteriores com vertigem, confusão e déficits de memória anterógrada.
- Infartos hipocampais unilaterais completos com confusão, alucinações visuais, alterações de humor, incluindo depressão e impulsividade.
- Infartos hipocampais bilaterais (tipicamente devido a doença embólica) com uma densa amnésia anterógrada.
- Lesões puntiformes associadas a amnésia anterógrada e problemas de linguagem.
Uma série de casos de 57 pacientes com infartos hipocampais descobriu que 70% dos pacientes apresentavam defeitos de campo visual concomitantes, 31% com fraqueza e 28% com perda sensorial. Apenas 19,3% dos pacientes apresentaram algum déficit de memória em testes neuropsicológicos, nenhum deles apresentando síndrome amnésica isolada. Portanto, lesões isquêmicas do hipocampo geralmente ocorrem concomitantemente com outros sintomas neurológicos.
Pacientes com infartos hipocampais também raramente recuperam a cognição normal em questão de horas, portanto, a presença contínua de amnésia além da faixa típica esperada para AGT deve levar à consideração de infarto hipocampal.
Apesar dessas dicas úteis, em pacientes que apresentam amnésia aguda, geralmente não é possível (usando apenas a avaliação à beira do leito) descartar a possibilidade improvável, mas importante, de acidente vascular cerebral. A recomendação do artigo, portanto, é que, sempre que possível, todos os pacientes com AGT devem fazer uma ressonância magnética na apresentação.
Na neuroimagem, as lesões na difusão associadas a AVC tendem a apresentar lesões restritivas maiores em comparação com aquelas em AGT. No quesito tempo, as lesões visíveis durante o período amnésico devem levar o clínico a considerar a hipótese de isquemia hipocampal. A ausência de lesões DWI durante a amnésia sugere mais AGT, uma vez que essas lesões geralmente aparecem após a resolução da amnésia.
AMNÉSIA EPILÉPTICA TRANSITÓRIA
Distinguir AGT de amnésia epiléptica transitória (AET), mais uma vez, depende da apresentação clínica e da história. A AET geralmente se apresenta ao acordar – cerca de 70% dos pacientes têm pelo menos um desses ataques – e dura entre 15 e 60 minutos, uma duração menor do que a habitual para a AGT.
De acordo com o local do início da crise no lobo temporal, os pacientes com AET ou seus familiares podem descrever alucinações olfativas ou gustativas, automatismos orofaciais, parada comportamental ou movimentos estereotipados das mãos antes, durante ou após o período amnéstico.
O EEG interictal mostra anormalidades epileptiformes em aproximadamente 30%–40% dos pacientes com AET nas regiões temporal ou frontotemporal. A privação do sono pode auxiliar no surgimento dessas alterações.
AMNÉSIA PSICOGÊNICA
A amnésia psicogênica varia de paciente para paciente e, portanto, torna difícil descrever um perfil neuropsicológico único e generalizável. Na maioria das vezes, a amnésia retrógrada é predominante. Embora extensa perda de memória remota possa ocorrer em outras condições, como encefalite límbica e síndrome de Korsakoff, os pacientes com amnésia psicogênica geralmente têm uma capacidade preservada de adquirir novas memórias. Isso contrasta com a densa amnésia anterógrada observada na AGT.
Existe uma associação com estresse psicológico ou fisiológico grave, embora esses gatilhos nem sempre sejam evidentes.
Uma das características mais úteis da amnésia psicogênica é se o paciente não consegue se lembrar de informações semânticas pessoais, como seu próprio nome, endereço, data de nascimento. Os pacientes também podem ser incapazes de reconhecer membros da família ou fotografias de si mesmos. Normalmente, essas formas de memória estão intactas em todas as síndromes cerebrais orgânicas, exceto nas mais graves.
AMNÉSIA PÓS-TRAUMÁTICA
A lesão cerebral traumática é frequentemente seguida por um período de amnésia pós-traumática, caracterizada por amnésia anterógrada, amnésia retrógrada (para informações episódicas, mas às vezes também para informações semânticas) e prejuízo em domínios cognitivos adicionais (por exemplo, atenção sustentada).
A história de traumatismo craniano geralmente é suficiente para distinguir amnésia pós-traumática de AGT (embora traumatismo craniano leve possa desencadear uma apresentação ‘clássica’ de AGT) e muitas vezes há outras características, como dores de cabeça, ansiedade, irritabilidade, labilidade emocional, vertigem, fonofobia/fotofobia e fadiga. A duração da amnésia pós-traumática correlaciona-se com a gravidade da lesão cerebral.
A amnésia pós-traumática está associada à conectividade funcional interrompida dentro da rede de modo padrão, uma coleção de regiões corticais centrais para a memória autobiográfica que inclui o hipocampo. Especificamente, parece haver conectividade funcional diminuída entre o giro parahipocampal e o córtex cingulado posterior, juntamente com a integridade da substância branca diminuída dentro do giro parahipocampal. Essas alterações de conectividade funcional desaparecem à medida que a amnésia pós-traumática melhora.
AMNÉSIA TÓXICA E RELACIONADA A DROGAS
Um diagnóstico diferencial final importante a ser considerado para amnésia aguda é encefalopatia tóxica/alcoólica ou relacionada a drogas. Uma característica marcante da AGT é a densa amnésia episódica anterógrada ao lado da preservação de outros processos cognitivos. O paciente que apresenta amnésia aguda devido ao álcool ou outras encefalopatias tóxicas geralmente apresenta outras características da encefalopatia, como um nível de consciência flutuante. Embora nem sempre seja o caso, os pacientes sob a influência de várias substâncias psicoativas também podem apresentar outras características neuropsiquiátricas, como distração, pressão na fala e ideias delirantes ou paranóides.
Vale a pena explorar uma história anterior de excesso de álcool ao lado de uma história psiquiátrica. Um histórico de drogas pode revelar possíveis fontes de overdose (como antidepressivos, neurolépticos, ansiolíticos ou hipnóticos). Finalmente, também pode haver evidência bioquímica de ingestão de drogas, como uma triagem toxicológica positiva, desequilíbrio ácido-base na gasometria arterial ou alterações no equilíbrio de sódio.
CONCLUSÃO
A amnésia de início agudo é uma apresentação neurológica impressionante que muitas vezes causa preocupação tanto para pacientes quanto para médicos. Embora a memória seja uma área complexa da neurociência cognitiva e a fisiopatologia subjacente ao comprometimento agudo da memória seja pouco compreendida, as principais síndromes clínicas que causam perda aguda de memória podem ser distinguidas pela anamnese e exame neurológico minuciosos com auxílio da neuroimagem. Em geral, as causas não isquêmicas de amnésia transitória (especialmente a AGT) têm um prognóstico favorável.