A dissecção arterial cervical (DAC) representa uma importante etiologia de AVC em adultos jovens e trata-se de uma ruptura da parede vascular com formação de hematoma intramural, o que pode levar a estenose, oclusão, formação de aneurismas e/ou formação de êmbolos. Esse processo pode levar a sintomas locais (dor ou compressão de estruturas adjancentes, como nervos cranianos) ou isquemia cerebral ou medular. As evidências são conflitantes em relação ao melhor manejo da dissecção, por isso há uma ampla variabilidade de condutas entre os especialistas.
Nesta declaração científica, o foco é resumir as últimas evidências disponíveis sobre a dissecção cervical, em especial sobre a avaliação diagnóstica e sobre as abordagens de tratamento.
EPIDEMIOLOGIA
A DACl contribui para 2% de todos os AVC isquêmicos, mas pode chegar até 25% dos AVC isquêmicos em adultos com menos de 50 anos de idade. Acredita-se que seja causada pela interação entre comorbidades, fatores genéticos ou congênitos, fatores anatômicos e fatores desencadeantes ambientais.
DIAGNÓSTICO CLÍNICO
Devido à natureza frequentemente inespecífica dos sintomas (por exemplo, cefaleia, dor cervical, tontura e zumbido), o diagnóstico de DAC é desafiador, especialmente na ausência de sintomas isquêmicos. Os sintomas iniciais comuns da DAC incluem dor facial, dor de cabeça (≈65%) e dor cervical (≈50%), que tendem a preceder os sintomas isquêmicos cerebrovasculares. Nas dissecções da carótida interna, a dor costuma ser facial, frontal ou temporal, enquanto as dissecções da artéria vertebral geralmente causam dor na região cervical ou occipital. As características da cefaleia não são específicas, mas raramente podem ser agudas e de natureza trovejante.
DIAGNÓSTICO POR IMAGEM
Historicamente, a angiografia por subtração digital (DSA) é considerada a técnica de referência para o diagnóstico e mostra as alterações luminais relacionadas à DAC, como retalho intimal ou duplo lúmen. A DSA, no entanto, fornece informações limitadas sobre a parede do vaso (ex: hematoma intramural) e acarreta riscos periprocedimentos (0,5% de dissecção iatrogênica ou 0,15% de AVC).
A angiotomografia (CTA) é uma alternativa eficaz à DSA que é não invasiva e mais amplamente disponível, podendo mostrar um espessamento excêntrico ou em forma de crescente na parede do vaso (hematoma intramural). Uma CTA falso-positiva pode ser causada por um artefato de ondas que imita um lúmen duplo e um artefato de pulsação que imita um hematoma intramural.
A RM pode ser superior à AngioTC para a identificação do hematoma intramural quando o protocolo apropriado incluindo imagens axiais ponderadas em T1 com supressão de gordura é usado. Ela pode vir falso-negativa pela ausência de sinal hiperintenso do hematoma intramural no quadro hiperagudo.
No geral, tanto a angioRM quanto a CTA apresentam boa sensibilidade e especificidade para o diagnóstico de DAC. A angioRM tem alta sensibilidade no diagnóstico de dissecção carotídea (95%), mas sua sensibilidade é menor para dissecção da artéria vertebral (60%) em comparação com a DSA.
As características de imagem da dissecção são a presença de retalho intimal, hematoma intramural, duplo lúmen, aneurisma dissecante ou, em certos casos, estenose ou oclusão afilada. Esses achados raramente estão presentes em conjunto, tornando o diagnóstico muitas vezes difícil. Uma pseudo-oclusão devido ao fluxo estagnado de uma oclusão distal pode mimetizar uma dissecção e uma duplicação ou fenestração da artéria carótida interna cervical ou da artéria vertebral pode ser confundida com a aparência de duplo lúmen visto em dissecções.
As dissecções da artéria carótida comumente se originam na porção distal da carótida interna cervical (2–3 cm acima da bifurcação), enquanto na artéria vertebral a maioria ocorre nos segmentos V2 ou V3. A localização pode ser usada para diferenciá-la de outras arteriopatias, como a aterosclerose, que geralmente ocorre na bifurcação da artéria carótida interna ou nos segmentos V1 e V4 e está frequentemente associada à calcificação.
Figura 1. Sinais de imagem sugestivos de diagnóstico de dissecção.
A, duplo lúmen.
B, Oclusão cônica ou em forma de chama no local típico de dissecção.
C, Retalho íntimo.
D, Pseudoaneurisma.
E, Hematoma intramural em T1 com supressão de gordura.
F, Hematoma mural em duplex de imagem de carótida (setas brancas) como estrutura hipoecogênica comprometendo o fluxo sanguíneo arterial na artéria vertebral (segmento V3).
G, Imagem axial de angioTC do pescoço de um paciente com oclusão completa da artéria carótida interna (ACI) esquerda relacionada a uma dissecção, mostrando o sinal do anel, com realce da parede carotídea e trombo fresco sem realce dentro da lúmen carotídeo. Este sinal não é específico para dissecção da ACI, mas aponta para uma oclusão recente e não crônica.
H, Imagem axial do pescoço da angioTC em um paciente com dissecção da artéria vertebral esquerda, com trombo circundando a artéria vertebral com lúmen hipoplásico, mas aparentemente normal, conhecido como sinal da crosta suboccipital, envolvendo o segmento atlanto-occipital (V3).
CONDIÇÕES ASSOCIADAS
Anormalidades do tecido conjuntivo, principal componente da parede arterial, são consideradas fator predisponente ao desenvolvimento de DAC. A DAC está associada a doenças monogênicas bem definidas do tecido conjuntivo, principalmente síndrome vascular de Ehlers-Danlos (gene COL3A1) e, em menor extensão, síndrome de Marfan (gene fibrilina 1), osteogênese imperfeita (gene COL1A1 ou COL1A2).
Grandes séries de DAC mostraram que o diagnóstico clínico e molecular de doenças monogênicas definidas do tecido conjuntivo é extremamente raro (<1%), e até mesmo história familiar é relatada em apenas uma minoria (<5%). Apesar desses dados, fatores genéticos associados a anormalidades do tecido conjuntivo desempenham um papel na patogênese da DAC. Estudos de biópsia de pele mostram que >50% dos casos de DAC apresentam alterações ultraestruturais.
A displasia fibromuscular é uma vasculopatia não aterosclerótica e não inflamatória, com 19% dos casos de displasia fibromuscular complicados por DAC. A displasia fibromuscular cervicocefálica é encontrada em quase 20% dos casos de DAC. Em comparação com pacientes com DAC sem displasia fibromuscular, a DAC relacionada à displasia fibromuscular foi associada com aumento >3 vezes no risco de dissecção recorrente da artéria cervical.
RELAÇÃO COM ISQUEMIA CEREBRAL
Em um pequeno estudo de dissecções extracranianas da artéria carótida, o intervalo de tempo entre os primeiros sintomas de dissecção (sinais locais ou ataque isquêmico transitório [AIT]) e o início do AVC isquêmico variou de alguns minutos a 31 dias; a maioria dos pacientes (82%) apresentou AVCl isquêmico na primeira semana após o início dos sintomas.
Os preditores de AVC isquêmico em pacientes com DAC estão resumidos no fluxograma 2.
Preditores importantes presentes em >1 estudo incluem sexo masculino, tabagismo, envolvimento da artéria vertebral, dissecções múltiplas ou dissecção recorrente precoce, estenose ou oclusão de alto grau e trombo intraluminal.
O Doppler transcraniano é um teste não invasivo que pode identificar pacientes com DAC sem acidente vascular cerebral que correm risco de um futuro AVC Os preditores de AVC futuro incluem a presença de sinais microembólicos e vasorreatividade cerebral anormal em dissecções da artéria carótida e fluxo pós-estenótico na artéria basilar em dissecções da artéria vertebral.
Fluxograma 1. Avaliação diagnóstica sugerida para pacientes com DAC.
TRATAMENTO HIPERAGUDO
Trombólise intravenosa (TIV)
As preocupações teóricas de segurança da TIV em pacientes com DAC incluem não apenas hemorragia intracraniana (HIC), mas também ocorrência ou aumento do hematoma intramural. No entanto, as evidências de TIV em pacientes com AVC isquêmico agudo por DAC permanecem limitadas e incluem principalmente estudos observacionais, que evidenciaram que não há aumento de mortalidade ou eventos adversos com a TIV em casos de DAC.
Na ausência de dados que sugiram preocupações de segurança e dada a eficácia comprovada da TIV em pacientes elegíveis com AVC isquêmico agudo, é razoável considerar a TIV para pacientes com AVC isquêmico agudo com DAC se eles atenderem a outros critérios padrão.
Trombectomia Mecânica
Em pacientes com DAC e AVC agudo apresentando oclusão em tandem, existe debate sobre a abordagem ideal. As abordagens incluem abrir primeiro a dissecção extracraniana e depois abordar a oclusão intracraniana de grandes vasos (anterógrada) ou abrir a oclusão intracraniana de grandes vasos e depois garantir a dissecção extracraniana (retrógrada). A maioria das análises multicêntricas mostra taxas semelhantes de recanalização e HIC sintomática entre as duas abordagens.
Stent Agudo
As dissecções da artéria cervical podem causar estenose ou oclusão do lúmen, mas mais frequentemente não levam à hipoperfusão do território distal, e o implante de stent na DAC como modalidade de tratamento agudo permanece controverso. Embora muitos estudos relatem segurança com implante de stent e taxas ainda mais altas de patência vascular no dia seguinte à trombectomia mecânica, não foi encontrada melhora no resultado funcional.
PREVENÇÃO DE AVC SECUNDÁRIO E OUTRAS INDICAÇÕES DE TRATAMENTO
Tratamento Antitrombótico
A maioria (≈85%) dos AVCs isquêmicos no contexto de DAC ocorre como resultado de embolização entre artérias. Assim, a terapia antitrombótica precoce é essencial para reduzir o risco de embolização adicional ou formação de trombos. Antiplaquetários e anticoagulação são comumente usados para prevenção de AVC na DAC. Metanálises de dados observacionais produziram resultados conflitantes sobre a eficácia e segurança de qualquer um dos tratamentos.
Dois ensaios randomizados, CADISS (Cervical Artery Dissection in Stroke Study) e TREAT-CAD (Biomarkers and Antithrombotic Treatment in Cervical Artery Dissection), examinaram anticoagulação versus terapia antiplaquetária para DAC.
O CADISS foi um ensaio clínico multicêntrico, randomizado, controlado e aberto, projetado para mostrar a viabilidade de um ensaio clínico randomizado em pacientes com DAC. O CADISS contou com 250 participantes, 118 com dissecção de carótida e 132 com dissecção de vertebral. Os participantes foram alocados aleatoriamente para receber anticoagulação ou antiplaquetário em 126 pacientes por 3 meses. Dentro desse período, o AVC isquêmico ocorreu em 3 dos 126 pacientes no grupo antiplaquetário e em 1 dos 124 pacientes no grupo anticoagulante (razão de chances, 0,34 [IC 95%, 0,01–4,23]). Nenhuma hemorragia grave foi observada no grupo antiplaquetário, enquanto no grupo anticoagulante ocorreu 1 hemorragia subaracnóidea em um paciente com extensão intracraniana de dissecção extracraniana da artéria vertebral.
O TREAT-CAD foi um estudo multicêntrico, aberto, randomizado, controlado e de não inferioridade comparando aspirina com AVK no tratamento da DAC. O estudo inscreveu 194 participantes, dos quais 100 receberam aspirina e 94 receberam AVK por 90 dias. O desfecho primário no TREAT-CAD foi um composto de resultados clínicos (acidente vascular cerebral, hemorragia grave, morte) e resultados de ressonância magnética (novas lesões cerebrais isquêmicas ou hemorrágicas). O desfecho composto primário ocorreu em 21 pacientes (23%) no grupo aspirina e em 12 pacientes (15%) no grupo AVK (diferença absoluta, 8% [IC 95%, –4 a 21]; não inferioridade P = 0,55 ). Consequentemente, a não inferioridade da aspirina não foi demonstrada. Todos os AVCs isquêmicos (n = 7) ocorreram no grupo da aspirina. Cinco dos 7 AVCs no grupo da aspirina ocorreram (ou recorreram) no primeiro dia após o início do tratamento, sugerindo a importância do início precoce do tratamento antitrombótico.
É razoável uma abordagem personalizada para a tomada de decisão entre anticoagulação e uso de antiplaquetários após uma dissecção aguda da artéria cervical, considerando o risco de sangramento individual do paciente e a presença ou ausência de características de alto risco, conforme mostrado no fluxograma 2.
Fluxograma 2. Algoritmo sugerido para seleção de tratamento antitrombótico em pacientes com DAC. Os pacientes são estratificados de acordo com fatores de risco radiológicos para hemorragia intracraniana (por exemplo, infarto grande, transformação hemorrágica e extensão intracraniana da dissecção) e fatores de risco radiológicos importantes para AVC isquêmico (por exemplo, presença de trombo intraluminal e estenose ou oclusão de alto grau) .
Duração da terapia antitrombótica
O risco de isquemia recorrente atribuível à DAC parece ser maior nas primeiras 2 a 4 semanas após o diagnóstico. Num estudo observacional multicêntrico prospectivo com 1.390 pacientes, 68 pacientes tiveram AVC recorrente ou AIT (7,53/100 pessoas-ano); isto foi ipsilateral à artéria dissecada em 80,8% e associado a uma dissecção recorrente da artéria cervical em 19,1%. O risco de AVC/AIT até 6 meses foi de 1,4% no geral. Não houve diferenças significativas na proporção de eventos naqueles que continuaram em comparação com aqueles que descontinuaram os antitrombóticos.
RISCO E PREDITORES DE DISSECÇÃO RECORRENTE
As taxas de recorrência relatadas variam de 0,7% a 1,9% por paciente-ano. Um estudo multicêntrico prospectivo (n=1.194) relatou uma taxa de recorrência de 3,3% em uma média de 34 meses. O tempo médio até a recorrência foi de 3 meses. A displasia fibromuscular e o antecedente de enxaqueca foram ambas independentemente associadas à recorrência.
MODIFICAÇÕES NO ESTILO DE VIDA PARA EVITAR DISSECÇÃO RECORRENTE/PIORA
Traumas triviais ou menores na cabeça/pescoço e manipulação no mês anterior são fatores de risco importantes para dissecção, observados em até 40% dos casos e são mais comuns em pacientes com dissecção em comparação com indivíduos com AVC isquêmico não relacionado à dissecção ou indivíduos saudáveis. Até o momento, permanece incerto se evitar atividades esportivas associadas ao risco de trauma cervical reduz o risco de agravamento ou dissecção recorrente.
IMAGEM DE ACOMPANHAMENTO E RECANALIZAÇÃO DA DISSECÇÃO
Um terço dos pacientes com DAC que apresentaram oclusão (25% do total de pacientes com DAC) apresentam resolução no acompanhamento, com um tempo médio de cicatrização de 4 meses. A cicatrização pode continuar até 12 meses após a dissecção inicial, além da qual a recanalização adicional é rara.
Independentemente disso, em pacientes com estenose ou oclusão grave, não há correlação entre doença arterial residual crônica e taxa de AVC além dos primeiros 6 meses após o diagnóstico
CONCLUSÃO
A DAC ocorre como resultado da interação entre fatores de risco, pequenos traumas, anomalias anatômicas e congênitas e predisposição genética. O diagnóstico pode ser desafiador tanto clínica quanto radiologicamente. Em pacientes com AVC isquêmico agudo devido à DAC, estratégias de tratamento agudo, como trombólise e trombectomia mecânica, são razoáveis em pacientes elegíveis. Sugerimos que a escolha da terapia antitrombótica seja individualizada e continuada por pelo menos 3 a 6 meses. O risco de dissecção recorrente é baixo. Estudos observacionais longitudinais e populacionais em andamento são necessários para preencher as lacunas atuais nos regimes antitrombóticos preferidos, considerando os prognósticos clínicos e radiográficos da DAC.